quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Que o favor deixe de ser nossa mediação universal

OPINIÃO:
Que o favor deixe de ser nossa mediação universal
São longas, contraditórias e tumultuadas as tentativas de construção de esferas públicas no nosso país. O público e o privado sempre se apresentaram como esferas simbióticas, porque não dizer, o público sempre bastante apropriado pelo privado, partindo-se do pressuposto que o que é público não pertence a ninguém, por isso pode ser apropriado por interesses particulares. Essa tem sido a base histórica da corrupção, manifesta especialmente sob as formas de assistencialismo e clientelismo, sob o peso das indicações pessoais e da dificuldade de construção de procedimentos universais e republicanos em nossa democracia.
São inúmeros os discursos, estudos, percepções empíricas do quanto o Estado brasileiro é orientado e atrelado a interesses privados. Há duas máximas que ilustram essas afirmações: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei!” e as práticas que demonstram que todos são iguais perante a lei – porém alguns são mais iguais que outros.
Os parágrafos acima ilustram o contexto no qual uma importante porém silenciosa conquista ocorreu recentemente. A aprovação, pelo Senado, do substitutivo que, entre outras medidas, transfere aos Ministérios a responsabilidade de concessão do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS, retirando-o do âmbito do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e atribuindo ao executivo a tarefa cartorial que lhes é devida. O CEBAS é concedido a organizações que atuam nas áreas da saúde, educação e assistência social.
Essa história tem início na construção da Política Nacional de Assistência Social, aprovada em 2004, quando diversas entidades que militam desde a constituinte para afirmação da assistência social como política pública de cidadania tensionam para que o CNAS deixe de ser um espaço cartorial, de concessão de certificados – e de fato constitua-se em esfera pública de controle social da política pública. A maior repercussão desse fato ocorre em 2008, quando se efetiva a Operação Fariseu, em que a Polícia Federal desarticulou forte esquema de corrupção relacionado à concessão do CEBAS.
O certificado de entidade beneficente assegura financiamento público indireto, ao permitir que a organização social sem fins lucrativos receba imunidades e isenções tributárias relevantes. Dois aspectos são o grande pano de fundo desse debate. O primeiro relaciona-se ao mecanismo histórico de concessão, onde é preciso reconhecer que ao fazê-lo, toda sociedade está, de fato, contribuindo para a existência e financiamento das organizações sociais. Estas são importantes para a constituição da esfera pública, porém é preciso que percorram, como qualquer entidade, os caminhos legais, submetendo-se aos critérios públicos, de Estado, os quais permitem a certificação. Os critérios devem espelhar a percepção de que o financiamento público das associações é algo que não origina de governos, mas de toda a sociedade. O segundo, precisa, por princípio, atender a finalidades públicas claras, com base nos princípios de universalização de direitos de cidadania apregoados pela Constituição Federal de 1988. No caso específico da assistência social, essa questão é ainda mais delicada, considerando a tradicional (e intencional) confusão de assistência social, a política pública de direitos, com assistencialismo, práticas relacionadas às mazelas que anteriormente mencionamos.
Em 2008, o governo federal publicou a Medida Provisória n.º 446 e mudou as regras para a concessão do CEBAS, causando muita polêmica junto às organizações da sociedade civil e no Congresso Nacional. Esta medida provisória foi rejeitada pelo Congresso Nacional. No mesmo ano, o Executivo Federal já havia encaminhado o Projeto de Lei com proposta de uma nova regulamentação para a concessão do CEBAS. O Congresso Nacional aprovou um substitutivo do projeto do Governo Federal após acirrado debate.
A principal novidade trazida pelo projeto aprovado é que a certificação será concedida pelo ministério da principal área de atuação da instituição. O processo de certificação deverá possibilitar à sociedade todo o seu acompanhamento, especialmente pela internet. Para isso, os ministérios responsáveis pela certificação deverão manter em seus sites lista atualizada com dados relativos às entidades. Assim, esses documentos serão válidos por até cinco anos, levando-se em consideração as características de cada área.
A ABONG considera que esse pode ser o primeiro passo concreto para a revisão do papel político-institucional do CNAS, para a construção do controle social na assistência social e mesmo nos setores de saúde e de educação, retirando o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) de uma atribuição que desvirtuava o sentido central de sua criação: o controle social sobre a política pública de assistência social. Talvez seja este um importante elemento para o enfrentamento de uma cultura tão antiga quanto nefasta em nossa história. Parafraseando Roberto Schwartz - que o favor deixe de ser nossa mediação universal.

Fonte: www.abong.org.br

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