segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Escravidão legalizada

Por Henrique Júdice

Um quinto das brasileiras trabalha quase sem direitos, mesmo quando dentro da lei. Trabalhadoras de segunda categoria para a Constituição, empregadas domésticas muitas vezes são, na prática, servas ou escravas.
Diversos assuntos de interesse direto dos trabalhadores encontram-se em análise no Congresso ou nos tribunais: jornada máxima, garantias contra a demissão injustificada, critérios de remuneração das horas extras. Mas de cada cinco trabalhadoras, pelo menos uma (proporção calculada pelo IBGE nas últimas pesquisas nacionais por amostra de domicílios — PNADs) está pré-excluída dessas necessárias discussões: qualquer que seja seu desfecho, a situação delas não mudará. Limitação de jornada, proteção contra dispensa sem justa causa e adicional de hora extra estão entre os 34 direitos trabalhistas declarados fundamentais na Constituição e entre os 25 direitos fundamentais que a mesma Constituição não reconhece às empregadas domésticas. O status jurídico constitucional delas no Brasil não chega a um terço do dos demais seres humanos (nos países regidos pelo direito islâmico, a título de comparação, os direitos patrimoniais da mulher pelo menos equivalem à metade dos de um homem).
Escravidão...
O trabalho doméstico tal como existente no Brasil é um restolho da escravidão. É interessante notar, todavia, que, quando esta vigorava oficialmente, a situação legal do trabalhador doméstico livre era menos má que na maior parte dos 121 anos subsequentes a seu fim. Em artigo publicado na revista jurídica O Trabalho em 1997, o juiz Roberto Davis mostra que as Ordenações Manuelinas (1512-1916), asseguravam-lhes pisos salariais e indenização por dispensa. Quando entrou em vigor o primeiro Código Civil (1917), expressão do liberalismo da república cafeeira, os direitos do conjunto da população trabalhadora foram reduzidos a um aviso prévio de um a oito dias. Ao longo dos anos 30 e 40, diversas conquistas foram sendo arrancadas dos patrões e do Estado: férias, descanso semanal, sindicalização, etc. As empregadas domésticas (via de regra filhas ou netas de escravas, quando não ex-escravas elas próprias) permaneceram à margem de todas essas vitórias.O direito à aposentadoria e demais benefícios da Previdência veio em 1972. Na seara propriamente trabalhista, no entanto, continuaram detentoras de um único direito: o aviso prévio do Código Civil foi substituído por férias de vinte dias úteis. Salário mínimo, descanso remunerado, 13º, irredutibilidade nominal do salário, adicional de férias, licença-maternidade e aviso prévio vieram apenas em 1988, cem anos após a abolição. Tudo o mais, porém, lhes foi negado: adicional noturno, FGTS, limitação de jornada, cobertura por acidentes de trabalho e muitas coisas mais.Isto ocorre, alegadamente, porque esses direitos acabariam por "onerar de forma demasiada o vínculo de trabalho do doméstico" indo contra seu "caráter de prestação de serviços eminentemente familiar", de sorte que o incremento das garantias daquelas que o exercem "acaba por não se coadunar com a natureza jurídica e sociológica do vínculo de trabalho doméstico". Essas asneiras embasaram o veto presidencial, em 2006, a uma lei que estendia o FGTS e o seguro-desemprego à categoria.
... e feudalismo
A idéia de que o trabalho doméstico, por não visar lucro, não deva ser onerado, é uma das maiores expressões do atraso da formação social brasileira, pois parte do pressuposto de que quem assalaria empregados para seu exclusivo conforto pessoal deva receber tratamento favorecido face a quem o faz para exercer atividade produtiva e gerar riqueza. Esse conceito articula-se com a inserção das domésticas nas famílias burguesas na condição servil de agregadas, pela qual perdem até mesmo sua liberdade de ir e vir (já que não raro ficam presas às casas dos patrões, tendo que servir dia e noite) a troco de supostos favores que só aprofundam essa servidão.Mas o que há de mais revelador a respeito da "natureza jurídica e sociológica do vínculo de trabalho doméstico" é o fato de a Constituição negar às que o exercem até mesmo direitos sem reflexo pecuniário para o empregador. Não são aplicáveis às empregadas domésticas, por exemplo, os dispositivos constitucionais que proíbem o trabalho infantil e a discriminação por gênero, cor, estado civil ou idade; e nem tampouco os que determinam a redução do risco de acidentes mediante normas de saúde, higiene e segurança do trabalho e a criminalização da retenção salarial.O sentido disso não é diretamente econômico. Visa, antes, reforçar a inferioridade social a que estão relegadas. a ordem constitucional brasileira, o empregador doméstico — e apenas ele — tem direito a escolher seus empregados e definir-lhes os salários em função da cor da pele, expô-los sem nenhuma responsabilidade ao risco de acidentes e submetê-los a qualquer jornada.
Piores trabalhos
Até bem pouco tempo atrás, podia também explorar mão-de-obra infanto-juvenil e pagar "salários" em comida, roupas (usadas, naturalmente) e outras quinquilharias. Até 1990, não havia nenhum limite de idade: foi preciso uma lei não-trabalhista (o Estatuto da Criança e do Adolescente) para que se proibisse o trabalho antes dos 14 anos em caráter geral, sem excetuar o emprego doméstico. Os descontos foram proibidos em 2006; o trabalho em idade inferior a 18 anos, apenas em 2008, e por força não de uma lei feita no Brasil, mas da lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (TIP), da Organização Internacional do Trabalho (OIT).A lista TIP, que contém formas de trabalho que os países signatários comprometem-se a proibir para menores, classifica os serviços domésticos como prejudiciais à saúde, à segurança e à moralidade. Vale a pena transcrever os riscos que ela associa a esses serviços: "esforços físicos intensos; isolamento; abuso físico, psicológico e sexual; longas jornadas de trabalho; trabalho noturno; calor; exposição ao fogo, posições antiergonômicas e movimentos repetitivos; tracionamento da coluna vertebral; sobrecarga muscular; exposição a riscos biológicos". Entre as prováveis repercussões à saúde, encontram-se bursites, tendinites, dorsalgias, queimaduras, ansiedade, alterações na vida familiar, transtornos do ciclo vigília-sono, DORT/LER, deformidades da coluna vertebral, síndrome do esgotamento profissional, neurose, traumatismos, tonturas e fobias.
Sem lei
O tratamento legal do trabalho doméstico é revelador do caráter da formação social brasileira. No que se refere à realidade do próprio trabalho doméstico, no entanto, corresponde apenas a uma pequena parte do problema. Isto porque, de acordo com uma pesquisa ("Raio X do emprego doméstico") realizada pelo IBGE em 2006, pelo menos 3 em cada 4 trabalhadoras domésticas (4,8 milhões num total de 6,5 milhões) não têm sequer carteira assinada. A proporção, no entanto, deve ser maior: arguindo a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, os empregadores domésticos se põem a salvo não apenas de qualquer pesquisa confiável como também da incipiente fiscalização do ministério do Trabalho.
Fonte:Jornal A Nova Democracia Ano VIII, nº 55, agosto de 2009 .

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