sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Mudança de ambiente e evolução das ONGs - Terceiro Setor

Por Eduardo Baptista



No Brasil, a primeira geração de organizações sociais - voltadas para a ação educativa, política e cidadã como conhecemos hoje - surgiu no final do período de governo militar, em um território claramente delimitado pela contestação à ordem dominante e pela autonomia frente a governos, empresas, instituições filantrópicas e mercados.O espaço da contestação lhes era assegurado pela identificação política com os movimentos populares, as comunidades de base da periferia urbana ou do meio rural e os sindicatos. A identidade se confundia com o apoio que era prestado através de assessorias, capacitação e instrumentação teórica a esses movimentos e comunidades.

Esses serviços prestados, ainda que não fossem vistos como tais, eram vividos como compromissos da militância e parte do enfrentamento ideológico ao governo militar.

Nos dez anos seguintes, a reorganização político-partidária, a consolidação do movimento sindical, o restabelecimento da ordem democrática, a Constituição de 1988, foram alterando as relações e a fronteira entre a sociedade organizada e o Estado. Os limites de cada campo tornaram-se menos demarcados, as fronteiras mais permeadas, assim como as demandas foram tornando-se mais complexas e fragmentadas. Iniciou-se uma crescente busca de especialização, de autonomia e institucionalização de organizações sociais que se foi refletindo no espectro das parcerias estabelecidas e no padrão de financiamento de suas atividades.

Nessa época, foram eleitos os primeiros governos municipais ligados a partidos de esquerda que permitiram as primeiras colaborações entre ONGs e governos na execução de políticas públicas e no estabelecimento de convênios. Também começou a surgir uma nova geração de organizações sociais, em geral especializadas em temáticas como meio ambiente, criança e adolescente, aids, gênero etc. Essa segunda geração de organizações era menos dirigida para a ação política geral focada nos processos de educação popular, e mais atenta a ações específicas, a resultados mais imediatos e a múltiplas fontes de financiamentos.

Durante a década de 1990, nos principais países doadores de recursos financeiros às agências de cooperação ao desenvolvimento, o pensamento macroeconômico liberal foi tornando-se hegemônico e impondo novos critérios de gestão desses recursos, com ênfase especialmente na visibilidade das ações e em resultados mensuráveis. Como conseqüência, nos anos seguintes, uma nova política de cooperação para governos e agências de financiamento começou a se perfilar no horizonte com outra ordem de prioridades. Os campos dos direitos humanos, da alfabetização de jovens e adultos, da formação sindical, do desenvolvimento rural, que haviam sido objeto dos apoios financeiros da década anterior, começaram a ceder espaços para programas temáticos mais específicos como ecologia, saúde, minorias e formação profissional.

A própria opinião pública dos países doadores, impulsionada por campanhas de mídia que contestavam a eficiência dos resultados obtidos, começou a questionar o sentido da ajuda, face aos limitados resultados obtidos. A multiplicação de organizações sociais na América Latina e na África, e as demandas que se foram abrindo na Europa Oriental e partes da Ásia, também aumentaram o volume de solicitações e contribuíram para uma maior seletividade e re-direcionamento dos apoios internacionais oferecidos pelas agências de cooperação não governamentais.

Assim foram surgindo no horizonte fortes indicadores de mudanças. Muitas organizações sociais brasileiras – em particular as ONGs - foram sendo levadas a iniciar um processo de redefinição institucional e re-organização de suas estratégias de comunicação e visibilidade social. Progressivamente, as relações com a sociedade, os governos, os agentes financiadores e os beneficiários de suas ações foram sendo colocados sob nova ótica. O movimento das ONGs que até então era bastante homogêneo – enquanto modo de presença na sociedade e relações com governos – começou a cindir-se e a comportar abordagens diferenciadas quanto à modalidade de intervenção social e aos padrões de financiamento. A interlocução bilateral e as ações de colaboração pontual ou cooperações institucionalizadas - iniciadas com o poder público municipal - expandiram-se para os planos estadual e federal, acompanhando a trajetória da chegada ao poder dos partidos de esquerda ou centro-esquerda.

Financiamentos e cessão de quadros técnicos para a formulação e a execução de políticas públicas setoriais, não pararam de crescer nos últimos 15 anos e atingiram seu auge no atual governo federal. Em decorrência, progressivamente foram sendo abertos espaços para novas modalidades de parcerias ainda pouco conhecidas pelas organizações, como arranjos interinstitucionais, convênios, terceirização de serviços públicos. Algumas organizações chegaram a níveis de dependência dos recursos governamentais muito alto, colocando em risco sua sobrevivência futura, caso haja alguma mudança brusca nas orientações de governo.

A diversificação de fontes de financiamento, a entrada das instituições multilaterais no financiamento às organizações e uma certa despolitização das práticas sociais, foram gerando um novo quadro de identidade e funcionamento das organizações sociais, heterogêneo e desarticulado. As organizações com um lastro político maior, mais militantes e homogêneas, que se autodenominavam ONGs, foram se agrupando principalmente em torno da ABONG, que se tornou um campo distintivo próprio, mesmo considerando a existência de um relativo pluralismo interno. Essa diversificação do universo das organizações sociais e de suas linhas de ação e o estabelecimento de outras prioridades e formatos de novas parcerias institucionais estiveram cada vez mais presentes na segunda metade da década passada. Elas deram origem a uma terceira geração de organizações e moldaram as relações e posições atuais no campo do chamado Terceiro Setor que reúne as diversas organizações sociais, ONG, fundações, institutos sociais de empresas, clubes de serviço, associações civis, cooperativas etc. Uma multiplicidade de instituições sem identidade, algumas focalizadas principalmente nos resultados, outras nos processos e um grupo mais restrito, nos dois. Todas enfrentando o desafio de comunicar seus resultados e os impactos de suas ações, dentro de um “mercado” de financiamento cada vez mais multifacetado e mediatizado.

A chegada ao poder de um governo de centro-esquerda, por várias vias muito ligado à trajetória das ONGs e dos movimentos sociais, reforçou e ampliou muito o movimento de aproximação entre Estado e sociedade, de atuação comum entre governo e organizações sociais na execução de políticas públicas. As implicações, resultados, instrumentos de monitoramento e conseqüências são demandas para análise e avaliação que a exigüidade deste texto não comporta, mas que não pode ignorar.

Padrão de financiamento das ONGs e cooperação internacionalA maioria das agências de cooperação internacional, após mais de três décadas de financiamento a projetos institucionais e programas temáticos amplos, com causas apenas mitigadas e resultados limitados para os indicadores econômicos em ascensão, foi sendo levada a adotar novos critérios para a gestão de sua carteira de parceiros e projetos, com reflexo sobre as modalidades de financiamento, seleção e acompanhamento de organizações sociais e projetos.

Assim, essas organizações foram sendo incentivadas a adotar novos instrumentos de gestão, um conjunto de ferramentas advindas principalmente da administração de empresas. Assim, em uma década, as organizações sociais se viram às voltas com sistema de planejamento, beneficiários diretos e indiretos, indicadores de resultados, gestão financeira, posicionamento estratégico e até plano de negócios, visando a sustentabilidade do empreendimento social no médio prazo e o cumprimento de demandas dos agentes financiadores. Ressalta-se que o uso das ferramentas de per si é negativo, dependendo dos critérios, do conteúdo e do uso que lhes atribuímos e da forma como se processa seu assentamento na cultura das organizações sociais, que não são empresas. O uso de ferramentas de planejamento, gestão, monitoria e avaliação devem ser escolhas políticas das organizações e podem se transformar em instrumentos auxiliares de democratização interna e transparência na comunicação com a sociedade.

O padrão de financiamento das ações sociais vem passando por mudanças muito significativas nos últimos dez anos. As organizações de Cooperação Internacional não governamentais, tradicionais apoiadoras das atividades de ONGs desde os anos 1970, já não representam para muitas ONGs o único caminho de acesso a recursos financeiros. Muitos outros agentes como organismos multilaterais, órgãos governamentais e empresas, diretamente ou através de suas fundações, estão ampliando sua presença nesse campo e redesenhando as relações estabelecidas anteriormente.

Da mesma forma, financiamentos institucionais ou a programas temáticos vão dando lugar a apoio a projetos específicos de curta duração e a outras modalidades como concursos, premiações e consórcios. O universo dos financiamentos, restrito até o início da década de 1990 às relações com a Cooperação Internacional e a projetos institucionais de média duração, vai se tornando multifacetado.

Os direitos humanos e a educação popular, que foram temas centrais dos anos 1980, depois a ecologia, os movimentos de mulheres, etnias, saúde, crianças, desenvolvimento local, na década passada, vão cedendo espaço à questão da pobreza, da exclusão social, da inserção profissional, como comentado anteriormente. Diretamente voltadas para esses temas, outras fontes de financiamento como as instituições multilaterais e fundações empresariais vêm aumentando sua presença e difundindo outra cultura de cooperação, enquanto que as agências não governamentais históricas - que tiveram um papel fundamental na construção e consolidação das ONGs de primeira geração - vêm diminuindo sua presença ou o volume dos recursos oferecidos.

Com relação a estas agências, há que se considerar também que de forma crescente elas vêm atuando em conjunto, integrando seus meios e recursos, criando suas próprias redes e articulações, assumindo cada vez mais um papel de sujeitos políticos no cenário global. No Brasil, o debate sobre as modalidades de financiamento ao desenvolvimento ou a origem dos recursos é ainda incipiente, quase não existem estudos sobre a qualidade e o volume dos recursos da Cooperação Internacional que as ONGs recebem.

Por isso, questões como mudança no padrão de financiamento, estratégias de posicionamento e prioridades temáticas ou por grupos sociais não podem ser analisadas em maior profundidade fora de um quadro amplo de evolução do universo das organizações sociais e suas relações com os agentes financiadores. No entanto, apesar de ir muito além das questões da cooperação internacional objeto deste texto, não se pode ignorar que a globalização ampliou ainda mais as assimetrias entre os continentes e o processo de acumulação e exclusão entre o Norte e o Sul, que são reproduzidos também internamente nos países e regiões.


Caminhos e Perspectivas


O panorama atual do financiamento às organizações e projetos sociais é extremamente heterogêneo e não permite generalizações ou a elaboração de uma tipologia bem definida.4Convivem padrões, formatos e visões políticas muito diferenciadas, que podem desenvolver estratégias paralelas e até mesmo concorrentes. Até mesmo a existência de fronteiras não governamentais claramente distinguidas em o que era governo e o que era espaço privado já não é mais tão visível. As interferências recíprocas são crescentes. Ao longo da última década, a diversidade temática apoiada pelos financiadores locais ou internacionais ampliou-se consideravelmente e embora conjunturalmente alguns temas tenham merecido uma atenção especial em função das grandes conferências sociais das Nações Unidas, todas as áreas de interesse social estão contempladas, variando a modalidade e a intensidade do apoio.

No entanto, em sentido oposto, em geral, tem ocorrido uma redução das áreas temáticas apoiadas por cada agente financiador, como se gradualmente estivesse acontecendo entre as agências de cooperação uma certa especialização ou divisão de campo de atuação. Por outro lado, a busca de uma maior profissionalização de financiadores e financiados e a tentativa de racionalização de custos de gestão e melhor monitoramento têm produzido uma mudança no perfil dos projetos financiados. De uma forma crescente está ocorrendo uma concentração de recursos em menor número de parceiros e muitas agências de cooperação têm preferido ter menos parceiros, a reduzir o volume das doações a cada um deles, da mesma forma, fala-se mais em focalização de recursos e experiências exemplares que em universalização dos benefícios diretos da cooperação.

Para suprir esse espaço, novas formas de relações estão sendo construídas. Como exemplos que vão se generalizando temos o apoio de agências à criação de fundos de pequenos projetos e à realização de premiações que conferem além de diplomas, doações para iniciativas específicas da organização social concorrente. Em geral, são eventos com gestão e monitoramento realizado por instituição local. Muitos financiadores têm repassado recursos a grandes ONGs para a administração de fundos com esses perfis. Por último, outra tendência observada nos últimos anos, refere-se à orientação adotada por muitas agências e organismos de cooperação em valorizar em seus apoios financeiros a promoção e implementação temática das grandes conferências sociais de Nações Unidas.

Essa estratégia respondeu a uma análise de convergência de interesses da cooperação internacional, de articulação da sociedade civil mundial e em certa medida, revelava uma certa globalização da atuação da chamada cooperação internacional, de agentes e organizações sociais. Mas essa etapa parece estar terminando sem que tenham surgido indicações concretas de novas orientações que seriam adotadas por essas agências. Pelo visto conviveremos por algum tempo com a ausência de um padrão de financiamento.

Os compromissos assumidos nos grandes acordos internacionais de cooperação ao desenvolvimento ainda levarão tempo para serem implementados. Do outro lado, as ONGs tenderão a ser chamadas – de forma crescente – a dar mais transparência à sua gestão, a comunicar os resultados de suas ações e a diversificar sua sustentabilidade financeira no médio prazo. Um desafio para atores sociais em busca de novos significados.




Nenhum comentário:

Postar um comentário